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sexta-feira, 1 de maio de 2009

EntreAspas

O avesso do avesso

A sua predisposição para brigar me incomodava. Era como se tudo nela estivesse à flor da pele. E qualquer toque dispararia a bomba. Trabalhávamos juntas havia dois anos. Mas não conseguíamos ser mais do que eu e ela. Nunca nós.
Um dia ela entregou-me um atestado. Entraria em licença para fazer uma cirurgia. Nada mais me disse. Entendi que queria preservar alguma fragilidade e respeitei. Uma semana depois ela ainda estava hospitalizada e me preocupei. Fui visitá-la. Como diretora da escola e como alguém que gostaria de ser sua amiga.
Recebeu-me com espanto e sem nenhum entusiasmo. Permaneceu quase muda até que eu me levantei para sair. Pegou em minha mão e começou a chorar. Era a primeira vez que alguém se preocupava com ela desde que resolvera assumir que era uma mulher vivendo num corpo masculino.
Foi então que eu soube. Olhei-a, buscando traços masculinos que nunca percebera. Ela percebeu minha curiosidade. Como um dique rompido, contou-me toda sua vida. Toda sua luta para vencer o preconceito. Primeiro, da família. Depois, da cidadezinha onde morava. Desistiu de lutar e buscou o anonimato na cidade grande. Mas trouxe junto as feridas ainda abertas. E a desconfiança típica de quem não quer mais ser ferida.
Estava ali fazendo sua última cirurgia. A que definitivamente acabaria com qualquer marca masculina num corpo que guardava uma alma que nascera feminina.
Saí de lá entendendo a agressividade que sempre me incomodara. Desejando verdadeiramente que ela deixasse naquele quarto também as marcas de tudo que sofrera.
Saí de lá um pouco mais tolerante, um pouco mais corajosa, mais humana enfim. Transexual, homossexual, heterossexual – somos todos gente. Gente que sente.
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