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segunda-feira, 2 de março de 2009

EntreAspas

Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida.
(Milton Nascimento e Fernando Brant)

É com Milton e Fernando Brant que revivo um dos meus mais significativos encontros. Aconteceu em Carrancas, uma bela cidadezinha mineira que, apesar da novela global, nunca havia me interessado tanto. Foi em Carrancas que a conheci. Uma Maria qualquer que se dizia Benedita. Chegara ali no lombo de um burro, puxado por um tropeiro nordestino. Contou-me várias histórias naquele jeito de ir e voltar que só os muito vividos conseguem ter. Achava que tinha mais de cem anos, mas não tinha certeza. Nunca teve uma certidão de nascimento e sua vida valera uma garrafa de cachaça, dois pedaços de rapadura e o filhote de burro que a trouxera. Foi assim que seu marido a ganhara do pai. Foi assim que, acreditava, garantira alguns anos de vida aos irmãos que ficaram no sertão nordestino.
Quando a encontrei, estava a acariciar as fibras da bananeira. Mãos estranhamente firmes teciam com destreza mais uma peça do belo artesanato regional. Fiquei ali, fascinada pelos movimentos dos dedos, ouvindo-a e sentindo a singeleza da vida. De suas mãos vi sair mais uma obra das que pululavam pela cidade. E entendi que, muito além de ser sua sobrevivência, cada obra feita era uma parte de sua vida incrustada nas imagens que a tecelagem revelava. Ela não as vendia todas. Parte delas era doada para que fosse vendida em prol do orfanato local. Eu a amei ainda mais por isso. Deixei-a com pesar. Eu que nunca fora muito paciente com histórias repetidas, saí plena da vida de Benedita.
Carrancas e Benedita estão hoje entrelaçadas em minha memória como ponto de referência. E Benedita será sempre como um parâmetro para mim – eu que orgulhosamente ostento meus diplomas e minhas fomes. Ela, na sua simplicidade, me ensinou que sabedoria está muito além do conhecimento. É preciso estar na vida prestando atenção nas pequenas coisas, valorizando, acima de tudo, a vida em todas as suas formas, tons e sabores. É preciso ter gana sempre.
Não sei se você concordará comigo, mas penso que viver é deixar alguma marca. Nem que seja a marca que esta mulher - pequena, anônima e analfabeta - deixou em mim: a marca da fé na vida.

Milton Nascimento - Maria, Maria


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