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quarta-feira, 18 de março de 2009

Conversas de um velho safado



O homem de vermelho

Poucas relações são tão íntimas e potencialmente inflamáveis como as que colocam em trincheiras opostas credor X devedor. No início, é uma situação marcada pela sinceridade. Quando precisa de dinheiro emprestado, o sujeito abre as comportas do coração e deixa jorrar, sem pudor, as desditas financeiras da existência. Reconhece o negócio que não deu certo; queixa-se do familiar que morreu em hora imprópria; revela os gastos adicionais com a amante exigente; confessa a empolgação noturna cujo fruto no dia seguinte foi uma dor de cabeça e um cheque voador. São inúmeras as situações que levam o indivíduo a precisar de uma grana extra. Nestas horas, o credor é o confessor.
O problema começa depois, na hora do acerto de contas. Se o cidadão não olha o mundo do topo da pirâmide social conhecerá o inferno na terra, caso não pague o que deve. Se o credor está inscrito no CNPJ, as sanções não ultrapassam a fronteira da legalidade: titulo protestado, inscrição no clube SPC-SERASA e ameaças brandas na forma de cartinhas escritas com letras grandes em negrito – “vamos invadir sua casa e confiscar todos seus bens móveis, imóveis, animados e inanimados”. A primeira vez que recebi uma destas coloquei mais duas trancas no castelo, afiei o facão, municiei a garrucha, (usada por meu avô na Revolução de 1923) e coloquei um aviso na porta: “os invasores serão recebidos à bala.” Felizmente não apareceu ninguém. Ou apareceu e deu às de Vila-Diogo, borrado de medo.
Porém, se o credor é um agiota civil, o devedor deve se preparar para intensas emoções, incluindo violência física, podendo, no limite, chegar à eliminação da sua existência neste vale de lágrimas.
O mundo nem sempre foi assim tão violento. Nos anos 50, contam os antigos, o terror dos endividados era o Homem de Vermelho (assim, reverencialmente em letras maiúsculas). Quando aquele camarada vestido de encarnado dos pés à cabeça (sapato, meias, calça, camisa, casaco e chapéu) aparecia no início da rua, a vizinhança sabia que não se tratava de Papai Noel. Alguém estava encalacrado financeiramente. Era vergonhoso ser cobrado assim publicamente.
Na rua em que morei na pré-delinquência juvenil – a Mário de Andrade, em Ipanema – havia uma devedora contumaz. Dona R. recebia a visita do Homem de Vermelho toda quinta-feira, às quatro em ponto da tarde, horário em que o marido estava trabalhando. Devia ser um débito complicado, porque ele só saía 1 hora depois.
Mas esta é uma outra história.
Em Porto Alegre cerca de duas semanas atrás a relação entre credor e devedor teve um capítulo conturbado. Um pequeno empresário entrou no prédio da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), encostou um revólver na cabeça do presidente da estatal e exigiu o pagamento de uma dívida de aproximadamente 200 mil reais. Um dia antes a governadora, destilando soberba, havia anunciado “um fato relevante”, o lucro de 211,9 milhões de reais da companhia. Com tanto dinheiro sobrando, o empresário foi buscar o que lhe era devido, já que seu filho estava sendo ameaçado de morte por um agiota. Mas, como versejou Ferreira Gullar “não basta estar certo para não morrer de bala”. Além de preso, o atormentado empresário foi ludibriado: para por fim ao seqüestro, depositaram a grana na sua conta; depois da rendição, fizeram o estorno. Os peixes pequenos sempre se ferram.

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