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segunda-feira, 7 de junho de 2010

Aline Belle: Dia dos Namorados

Depois de um dia cansativo, pra variar, a semana se findava. Estava exausta, de tudo um pouco. Poderia dormir. Dormir muito era tudo o que queria. Nem os sonhos, aqueles que já não tinha fazia tempo, atrapalhariam sua morbidez, caso aparecessem. Na verdade, queria não ver o dia seguinte, não queria ter notícias dele, do Dia dos namorados.
Encaixou a chave no portão, ao trancá-lo, sabia que seus maiores tormentos começariam. Recolheu as cartas, os panfletos (promessas - mentirosas - de uma vida mais fácil e feliz). Abriu a porta, acendeu a luz, colocou a bolsa no sofá, livrou-se dos sapatos a caminho da cozinha, tirou uma pequena embalagem da geladeira, abriu e o colocou no micro-ondas. Tudo sempre igual.
Enquanto a comida descongelava, encostada no mármore frio da pia, deu uma olhada na correspondência. Incrível como uma mulher solteira recebe informativos, catálogos de roupas e de viagens, propostas de adesão a cartões de crédito!
Um panfleto pequeno, porém em letras garrafais, chamou-lhe atenção: Operação Cata Bagulho.
Dizia nele que qualquer coisa que não servisse (móveis, papéis, roupas) poderia ser colocada na calçada de sua casa para ser recolhida pelo caminhão da Prefeitura para ser levada a lixões, doadas, recicladas...
Pensou nas pilhas alcalinas já sem finalidade que guardava, mas lembrou-se que as doava para uma velha senhora que fazia dinheiro com elas e (também) assim sustentava a família numerosa.
Os livros! Não, ainda não estava na época de fazer a limpeza na estante. E depois, poderia doá-los para a escola pública como fizera com as revistas.
O mais não lhe servia?
O que mais poderia doar?
E lembrou-se daquilo. Fazia anos que o guardava, na vã esperança de um dia ser bem utilizado. Estava lá, jogado em algum lugar que ela fingia não saber bem qual era. Já tinha lavado-o, já tinha pintado-o de todas as cores possíveis e de nada adiantava, não conseguia restaurá-lo.Talvez uma lixa bem possante tirasse a ferrugem, esfarelasse as corrosões? Mas andava com preguiça, tão desanimada, isso daria muito trabalho e ela estava sem estímulo para começar a reformá-lo novamente. Tantas e tantas vezes havia tentado... Estava decidido: seria doado! Quem sabe a caridade pudesse ser um bom modo de aproveitar aquilo, já que para fazê-la ainda sentia algum ânimo.

*****

Na manhã seguinte, os homens da Prefeitura tiveram certa dificuldade e precisaram de muita força para carregar seu pesado coração, que de alguma forma, movido por um sentimento de solidariedade, batia fraco...
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A Prefeitura de São Paulo tem uma ação chamada "Cata Bagulho" (acharam que era gozação, né?), onde, através de panfletos informa o dia e os horários em que os caminhões passarão recolhendo tudo que os moradores não querem mais, destinando-os para a reciclagem, doações ou lixões da Capital. Acho que vale a pena ficar de olho, se informar sobre dias e horários e contribuir...

8 comentários:

Miguel S. G. Chammas disse...

Aline ma Belle, nada de tristezas (elas não pagam dívidas) sorria e bola prá frente.
Nada comoum dia após o outro, ou será que é, um texto depois do outro?

7/6/10 11:34
Zeca disse...

Aline,
desta vez você conseguiu me deixar sem fôlego! Não sei se pela proximidade do "temido dia", onde os que estão solteiros não têm o que comemorar (ou têm?), se pela belíssima construção do texto! Mas conhecendo-a desde antigos outros "dias temidos", tenho certeza que foi mesmo a excelência do texto que, uma vez iniciada a leitura, não se consegue interromper. E depois, mais uma releitura, e outr, e outra.......
Vou até ali respirar um pouco. Depois volto pra ler outra vez!

Beijão.

7/6/10 11:44
Euza disse...

Com certeza a solidariedade enche qualquer coração! E dá vida nova a quem anda com as esperanças perdidas, né? Mas é excelente tb para quem está cercado de amor. Afinal, amor nunca é demais!!!
Muito legal a idéia de ligar o dia dos namorados ao Cata bagulho. Bom demais o seu texto, companheira.
Beijocas

8/6/10 10:20
Shirley disse...

Manazinha de minh'alma, que maravilha encontrar uma pessoa que não tem nada pra ser jogado no Cata-Bagulho! Aqui em Manaus tbm tem, mas aqui o "progesso" sempre demora: eles nunca avisam, a gente só sabe se observar os vizinhos mais "inseridos" começarem a colocar as tranqueiras na calçada. E como eu sempre tenho tranqueira pra jogar fora, meu Pai! kkk :-(
Mas meu coraçãozinho, nem pensar, ele FICA, batendo firme e forte, pq ele tem dono: EU! :-D Bjo, Alinenéuri!

9/6/10 11:45
Anônimo disse...

Saudações!
Amiga,
A mensagem é verdadeiramente profunda, mas, acho que o importante é viver, não importa de que maneira...devolva o panfleto para o “CATA BAGULHO”, fica muito melhor, não é mesmo?
Parabéns pelo excelente Post!
Abraços,
LISON.

9/6/10 22:02
Mari Costa disse...

Oi querida

Emocionante historia, nao imaginava esse final.Mas muitas vezes temos que nos livrar de coisas velhas e que nao sejam uteis para a gente e temos que doar porque com certeza vai ser util para outra pessoa.Temos que sempre está a procura do catabagulho par anosdesprender não só de bens materiais , mas como de sentimentos ruins, que só fazem mal.
Bjs no coração

10/6/10 00:03
Jacinta Dantas disse...

Pois é,
leio seu texto -muito bem construído- pensando que a gente precisa ter coragem para se olhar e ver, de fato, o que precisa ser visto e revisto. Entregar-se ao "Catabagulho", passar o pesado coração às mãos de outros, para mim é se permitir uma reciclagem presenteando-se numa revisão de vida.
Ah! sei lá. Eu viajo nas linhas, nas entrelinhas então?
Bjs

11/6/10 08:33
AdéliaTheresaCampos disse...

Linda menina,

Que texto!
Você é artesã da palavra e...
certamente de coração enferrujado também.

Beijos, carinho,
AdéliaTheresaCampos

12/6/10 13:32
 
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