EntreAspas
Para algumas coisas sou completamente cega. Não uma cegueira proposital. É que só vejo o que está no campo dos meus interesses. Acho que todos somos assim – mas nem todos reconhecemos. É claro que este campo é mutável. Depende do tamanho da alma. E às vezes, confesso, a minha é bem pequena.
Foi num dia de alma pequena que tudo aconteceu. Sabe estes dias em que tudo te parece sem cor? Estava cega para tudo – menos para minhas dores particulares. Nunca elas estiveram tão profundas quanto naquela manhã gelada que beirava o inverno. Até a neblina opaca contribuía. Um tanto pela idade – estou começando a sentir o degringolar do meu tônus muscular. Interno, claro!
Ai, como eu tergiverso! Mas então o dia era em branco. E foi no branco que se inscreveu uma sucessão de imprevistos. Começou no estouro do pneu. Depois que meu coração reaprendeu a bater, vieram os palavrões. Eu não me lembrava do número de emergência da administradora da rodovia. Os carros pequenos passavam por mim sem me ver. Os carreteiros olhavam divertidos sem parar. E a minha reunião em BH incendiando a minha ansiedade. Em seguida, fui parada numa barreira da Polícia Federal. Mais preciosos minutos escorrendo das minhas horas contadas.
O terceiro incidente veio alguns km depois. Pista fechada, sons de ambulância, todos fora de seus veículos e eu tamborilando no volante. A reunião cada vez mais crescente na minha preocupação. Quando já estava contabilizando o absurdo de quase uma hora de atraso na viagem, a porta do carro da frente abriu e saiu uma senhora. Enquanto ela vinha na minha direção, fiquei observando seu andar torto e o reflexo do esforço em seu rosto. Por que será que alguém com tamanha dificuldade de andar inventa de sair do carro sem nenhuma necessidade?
Depois de me cumprimentar, fez-me algumas perguntas. Respondi com pouquíssima vontade. Meu mau humor estava beirando a falta de educação. De repente, começou a me contar do acidente que a deixara com uma perna menor que a outra. Uma absoluta falta de interesse me fez interrompê-la: foi grave o acidente aí na frente?
Ela me olhou sem surpresa. Parecia estar acostumada a não ser ouvida. Foi aí que me vi. Um monte de egoísmo e cegueira. Igualzíssima a todo ser humano que se sente imune ao envelhecimento. Cheia de remorsos, arregalei os olhos da alma e me dispus a ouvi-la. Mas ela já não falava mais de si. Depois de me dizer o que soubera sobre o acidente, colocou em mim olhos bondosos e aquele ar de quem tem todo o tempo do mundo para me escutar. Com o remorso batendo pesado na consciência, tentei me desculpar contando do meu trabalho e do tempo contado que era minha vida.
Foi um papo rápido, como rápidas têm sido minhas horas. Mas o incidente como um todo mexeu profundamente com minha auto-imagem. Reconheço: nunca fui muito paciente com a velhice, embora a respeite. E sempre me cobrei por isso. Sei, ninguém é perfeito e estou longe, muito longe da perfeição. Mas não me lembro de ter sido tão grosseira. Ou tão insensível. Pelo resto do tempo que fiquei naquela rodovia, me culpei. Inutilmente. Culpa nunca acrescenta, só paralisa.
Hoje, o incidente ainda me incomoda. E ainda não fiz nada de concreto para me sentir melhor. Continuo acalentando a culpa sem tempo para expurgá-la. Mas não estou indignada comigo mesma. Aliás, estou em processo de desindignação. Ando discordando de velhos hábitos e antigos atos. E até de Nietzsche, apesar de tender a concordar que “ninguém mente tanto quanto o indignado” - talvez porque os brados quase nunca se transformem em atitudes. Ao invés de indignar-me, sei que devo partir para a ação reversa. Sem cegueiras, propositais ou não. Espero.
Foi num dia de alma pequena que tudo aconteceu. Sabe estes dias em que tudo te parece sem cor? Estava cega para tudo – menos para minhas dores particulares. Nunca elas estiveram tão profundas quanto naquela manhã gelada que beirava o inverno. Até a neblina opaca contribuía. Um tanto pela idade – estou começando a sentir o degringolar do meu tônus muscular. Interno, claro!
Ai, como eu tergiverso! Mas então o dia era em branco. E foi no branco que se inscreveu uma sucessão de imprevistos. Começou no estouro do pneu. Depois que meu coração reaprendeu a bater, vieram os palavrões. Eu não me lembrava do número de emergência da administradora da rodovia. Os carros pequenos passavam por mim sem me ver. Os carreteiros olhavam divertidos sem parar. E a minha reunião em BH incendiando a minha ansiedade. Em seguida, fui parada numa barreira da Polícia Federal. Mais preciosos minutos escorrendo das minhas horas contadas.
O terceiro incidente veio alguns km depois. Pista fechada, sons de ambulância, todos fora de seus veículos e eu tamborilando no volante. A reunião cada vez mais crescente na minha preocupação. Quando já estava contabilizando o absurdo de quase uma hora de atraso na viagem, a porta do carro da frente abriu e saiu uma senhora. Enquanto ela vinha na minha direção, fiquei observando seu andar torto e o reflexo do esforço em seu rosto. Por que será que alguém com tamanha dificuldade de andar inventa de sair do carro sem nenhuma necessidade?
Depois de me cumprimentar, fez-me algumas perguntas. Respondi com pouquíssima vontade. Meu mau humor estava beirando a falta de educação. De repente, começou a me contar do acidente que a deixara com uma perna menor que a outra. Uma absoluta falta de interesse me fez interrompê-la: foi grave o acidente aí na frente?
Ela me olhou sem surpresa. Parecia estar acostumada a não ser ouvida. Foi aí que me vi. Um monte de egoísmo e cegueira. Igualzíssima a todo ser humano que se sente imune ao envelhecimento. Cheia de remorsos, arregalei os olhos da alma e me dispus a ouvi-la. Mas ela já não falava mais de si. Depois de me dizer o que soubera sobre o acidente, colocou em mim olhos bondosos e aquele ar de quem tem todo o tempo do mundo para me escutar. Com o remorso batendo pesado na consciência, tentei me desculpar contando do meu trabalho e do tempo contado que era minha vida.
Foi um papo rápido, como rápidas têm sido minhas horas. Mas o incidente como um todo mexeu profundamente com minha auto-imagem. Reconheço: nunca fui muito paciente com a velhice, embora a respeite. E sempre me cobrei por isso. Sei, ninguém é perfeito e estou longe, muito longe da perfeição. Mas não me lembro de ter sido tão grosseira. Ou tão insensível. Pelo resto do tempo que fiquei naquela rodovia, me culpei. Inutilmente. Culpa nunca acrescenta, só paralisa.
Hoje, o incidente ainda me incomoda. E ainda não fiz nada de concreto para me sentir melhor. Continuo acalentando a culpa sem tempo para expurgá-la. Mas não estou indignada comigo mesma. Aliás, estou em processo de desindignação. Ando discordando de velhos hábitos e antigos atos. E até de Nietzsche, apesar de tender a concordar que “ninguém mente tanto quanto o indignado” - talvez porque os brados quase nunca se transformem em atitudes. Ao invés de indignar-me, sei que devo partir para a ação reversa. Sem cegueiras, propositais ou não. Espero.
A imagem: Pintura digital de João Werner: Cachimbo da Paz
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