Conversas de um velho safado
O triunfo da alegriaEu parecia o corcunda de Notre Dame quando entrei no ambulatório.
- Qual o problema? – perguntou, bem humorada, a enfermeira.
A Deusa morena que me acompanhava, explicou.
- A gente estava brincando em frente à Catedral. De repente ele sentiu um estalo na coluna e ficou assim.
Eu também me manifestei.
- Ai, ai, ai... Vou morrer.
A enfermeira gentilmente discordou.
- Foi só um espasmo muscular. Vou aplicar uma injeção e em cinco minutos vai passar.
Ao ouvir a palavra injeção esqueci momentaneamente a dor.
- Vai doer? – indaguei assustado.
- Não, é só uma picadinha.
Puxei a manga da camiseta, fechei os olhos e ofereci o braço para a picada.
Ana Néri recusou a oferta.
- Na nádega, no braço vai doer mais.
Não sei por que esta preferência das enfermeiras por picar o traseiro masculino, mas não hesitei, arriei a bermuda, a cueca e expus o traseiro lendário. A dor venceu o pudor.
- Relaxa – ordenou o anjo vestido de branco. A ordem teve efeito contrário. Contraí ainda mais os músculos. Lentamente ela introduziu o líquido balsâmico no meu organismo. Talvez um pouco lentamente demais. Doeu um pouquinho, mas resolveu.
O episódio aconteceu na madrugada de terça-feira do carnaval de 1998, na Praça XV de Novembro, no centro de Florianópolis. Depois deste sinal enviado pelos deuses, aposentei a fantasia de palhaço. O carnaval nunca mais foi o mesmo, assim como a minha coluna.
Porém, não me tornei um ex-folião ranzinza, como aquele sujeito que deixa de fumar e passa a odiar quem ainda se deleita com o nefando vício. Gosto do Carnaval ou, para ser mais preciso, da alegria ampla geral e irrestrita que contamina o país nos cinco dias de folia – uma ofegante epidemia na definição inspirada de Chico Buarque. Me impressiona o ardor com que a maioria da população atende a convocação dos cinco sentidos e se empenha em saciar a fome de provar os pecaminosos prazeres da carne. O Carnaval é o triunfo da alegria, do prazer, da beleza e da sensualidade. Até onde posso divisar, não existe comportamento similar no planeta.
Gosto de pensar que brincar no Carnaval é a forma que encontramos de nos vingar das mazelas que nos açoitam no restante do ano: a miséria, a corrupção, a criminalidade, a incompetência governamental, a safadeza empresarial, e mais um monte de eteceteras. Em matéria de desenvolvimento e justiça social ainda estamos engatinhando, em compensação sabemos, talvez como nenhum outro povo, que a vida pode ser o oposto de um vale de lágrimas.
No entanto, o Carnaval não é só alegria. É, também, droga, violência e morte. A citada Praça XV, por exemplo, dois anos atrás foi palco não apenas para o desfile de blocos de sujos, mas também de um acerto de contas por conta de uma dívida de drogas. Um corpo ficou estendido no chão e os foliões prudentemente escafederam-se. Mas voltaram no ano seguinte. O brasileiro não desiste nunca.
O mundo mudou e o Carnaval mudou com ele. Se para melhor ou para pior é uma questão que deixo para a avaliação dos leitores. Mas, acredito, prevalece ainda a alegria. E esta, como disse Oswald de Andrade, é a prova dos nove.
Eu não brinco mais, mas brindo a quem brinca.
Salve, Momo!
Evoé, Baco!
Salut, foliões!
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